Ensaio em futurologia urbana
A liberdade e o direito ao trabalho renovam-se considerando uma crise global provocada pela transcendência da natureza.
A crise sanitária global provocada pelo COVID-19 trouxe ao debate público a filosofia como não se via há muito tempo. As redes neuronais da internet aquecem-se com debates por vídeo, livestreams e textos de intervenção mundo afora: Agamben, Žižek, Byung-Chul Han, José Gil, Habermas e outros grandes nomes marcam presença tanto no parlatório global como nas assembleias de especialistas. A filosofia, em sua multiplicidade, manifesta-se temporalmente de maneira atípica, pois dificilmente busca firmar-se em sedimentos sincrônicos ou diacrônicos. Por outro lado, o amor pelo conhecimento nunca esteve distante de seu espaço de nascença: a cidade. Se o futuro que nos aguarda tem a cidade como ponto fulcral, a transformação do espaço urbano pelo irrompimento pandêmico haverá de afetar a filosofia também. A despeito da insistência de intelectuais americanos em enraizar a prática filosófica em termos conjunturais e contextuais, o núcleo duro do nosso método é a busca pelo universal. O que interessa hoje - tendo em mente o papel da filosofia na realização do projeto humano e a afirmação de Kant a respeito da crítica como o tribunal da razão[1] - é trazer as descobertas acerca das estruturas formais do ser e do agir no mundo para a realização das nossas potencialidades. Pois então, considerando que cabe ao filósofo o papel de esclarecer problemas e agir como o sanitarista das práticas racionais e dialógicas, exercícios de futorologia surgem como essenciais na orientação do pensamento para que este mantenha-se longe de nostalgias e vícios ideológicos – nada mais do que bengalas teóricas e espectros imagéticos que pouco informam o futuro. O modernismo e o futurismo, o realismo soviético e o realismo capitalista de Robert Moses, cada qual à sua maneira alteraram profundamente a relação entre homem e espaço como também a forma de constituir o humano. O espaço urbano presencia momentos históricos de ruptura, onde forças opostas (e filosofias opostas) medem esforços num verdadeiro cabo-de-guerra para projetarem, no espaço, os seus ideais de convivialidade e individualidade. A filosofia da cidade emerge como o contraponto aos anseios tecnocráticos e acumuladores do capitalismo pós-moderno, que para além da reificação da matéria e a sua subsequente comercialização, extrapola os limites mais ou menos estruturantes da cultura para então a tudo coisificar[2], processar e lançar novamente no mercado. O filósofo então, ao iniciar a sua campanha contra a comodificação da própria razão e a censura de mercado contra a liberdade emancipada, deve tomar o devido cuidado para, ao firmar o campo disciplinar da filosofia da cidade – melhor seria dizê-lo na cidade – não transformar a cidade em objeto, mas sim em meio de comunicação[3]. Aquela (a cidade) não deve ser o fim em si mesmo, ou pensada como um tipo de projeto de renovação disciplinar do cânone filosófico, mas sim o substrato sob o qual será possível propiciar o vicejamento de uma rede informacional de acoplamentos múltiplos, cuja missão mais importante será facilitar a reintegração da filosofia no ato de escrever (e inscrever) (n)o espaço urbano novas narrativas de criação.
A praça pública reconfigurada
Nos Estados Unidos, discute-se em meio ao caos, a questão das eleições e o papel do Estado nos tempos vindouros. Consideremos neste ensaio, em resposta a problemas como o citado, a ficção filosófica do tcheco-brasileiro Vilém Flusser[4], ou seja, reconhecer o caráter intrinsicamente especulativo do fazer filosófico e os seus respectivos objetos para além da virtualidade da imaginação ensaística[5]. Tomando a ficção como que informada pela realidade, tempos de hiperrealismo capitalista e surrealismo ecológico, o bicho-papão que paira – ou melhor seria dizer habita as superfícies? – ao redor é tão invisível como o mundo vindouro. Neste aspecto, retomando a América e o seu jogo democrático que à todos afeta, mas que apenas poucos têm algo a dizer sobre, o papel dos serviços públicos gratuitos (cuja existência é estruturante do tecido urbano) faz-se imperativo na luta das forças político-econômicas e pela saúde. Muito se fala sobre a USPS (correios públicos) que, levando à ferro e à fogo a ficção “baseada em fatos” que intento aqui dar luz, provavelmente será descartada em favor da terceirização dos seus serviços. Praças administradas por empresas já são em muitos pontos do globo, uma realidade cotidiana. A eleição norte-americana é representativa de outra questão essencial à filosofia da cidade e ao futuro, em algo que o pensador austro-brasileiro Roberto Schwarcz, na altura do golpe militar de 1964 chamou de “a revanche da província, dos pequenos proprietários, dos ratos de missa, das pudibundas, dos bacharéis em lei, etc”[6]. A filosofia da cidade deve lidar com o recalque pronvinciano, forte aliado de um certo grupo de profetas do “progresso”[7].
Em um cenário já comprovado nas eleições anteriores, no qual as grandes cidades americanas votaram à favor dos Democratas e as pequenas apostaram no conservadorismo tacanho, Trump será reeleito em um deslizamento de terra (landslide, para mantermos o tom catastrófico) - soterrando em definitivo os anseios da esquerda pelo Medicare4all (proposta por um SNS-SUS estadunidense). Joe Biden, por sua vez, prova que a doença mais perigosa na América não é o Coronavirus, mas sim a sua rápida decadência neurológica que parece ter contagiado a ala progressista e expulsado o “corpo estranho” chamado Bernie Sanders. Os liberais daquele país, provalvemente não aparecerão nos colégios eleitorais, tomados pelo medo da contaminação[8]. Sem correios públicos não há votação remota, e a aposta dos Democratas no “business as usual”, ou seja, numa normalidade passada, é uma clara manifestação do que o crítico literário Fredric Jameson chamou de “nostalgia pelo presente”[9]; pensamento pusilânime que impossibilita a ação e anestesia os músculos da indignação. O presente, como atesta o catalão Josep Ramoneda, deve ser ocupado pela filosofia enquanto ontologia, e somente assim que esta poderá se realizar enquanto força do progresso positivo e democrático e não sucumbir à instrumentalização pelo conservadorismo.
Com a mesma tônica, a expansão da administração privada dos espaços públicos, nos termos alertados por Achille Mbembe[10], é a outra face da moeda capitalista que visa controlar as cidades: desabastecimento, enfraquecimento institucional, desterritorialização e acrescento aqui a total mediação dos indivíduos com o mundo das coisas por agenciamentos em termos de serviços prestados (a uberização do mundo da vida). Nossa infraestrutura global de educação pública será desmontada em favor das plataformas digitais e online: já brandavam os nossos precursores com o slongan “desapropriem os meios de produção!”, mas não contavam com a fetichização da prática manufatureira pelo capitalismo digital. Sou dono das minhas ferramentas, mas a entrega dos meus produtos é alienada pela incapacidade de estabelecer circuitos econômicos solidários – até o termo foi capturado e a tal da economia circular hoje pertence aos magnatas do silício. Em Europa, há palestras e discursos midiáticos sobre os "sucessos" dos MOOCs[11], videoaulas e a revolução do "auto-ensino" por meio de plataformas digitais como Coursera e EdX. No âmbito da quarentena, pais e guardiões serão (e alguns já o são) forçados a tornar-se educadores em meio-período como padrão esperado de conduta (a etiqueta social demandará) e cada passo das crianças se tornará um data-point para orientar seu futuro. Deixemos que o Google implemente a governança global corporativa, libertaremos os enormes campi escolares para a especulação e incorporação imobiliária.
No campo do trabalho, UBIs (renda mínima e universal) agora são objetos reais de discussão em todos os campos ideológicos e vejo isso apenas como o começo. Os pensadores neoliberais provavelmente nutrirão a ideia de uma sociedade pós-laboral em que o “helicopter money”[12] será fornecido por algum tipo de sistema financeirizado, com terceirização completa da mão-de-obra e a maioria dos serviços sendo integrados ao conceito de "cidades inteligentes". Cada indivíduo deverá ser "auto-empreendedor" em uma versão distorcida (e distópica) de socialismo; e o conceito de "trabalho livre para o bem comum" ganhará força no debate público – o estado de emergência traz consigo a pacificação do trabalho não-remunerado ao seio da democracia liberal. Portugal que o diga, vivendo desde o 25 de Abril de emergências a emergências, fazendo do trabalho de cuidadores e professores substitutos casos de coação moral: não existe almoço grátis para o Estado, mas um cafézinho à borla nunca lhe ofendeu a sensibilidade. O lado fúnebre da liberdade é ser livre para ser escravo.
No campo acadêmico, as humanidades já começam a receber novos chutes e pontapés, mas não sem a sua parcela de culpa. Concentramo-nos demasiadamente em trabalhos desnecessários e mambembes[13]. Tal "cenário do fim do mundo" inundará as contas bancárias dos departamentos de STEM[14] em detrimento das ciências humanas. Os acadêmicos mais argutos prevalecerão em nosso campo ao pressionarem as agências de fomento por uma nova era de instrumentalização das ciências sociais, tudo em favor do controle social e das inovações burocráticas. A ciência disciplinar dos recursos humanos surgirá como a nova força policial, enquanto que a arquitetura e o urbanismo (ciências sociais aplicadas), sofrerão uma guinada sanitarista e autoritária: ideais estéticos encontrarão ideais higiênicos e reescreverão o papel da cidade do futuro. Já é perceptível no sul asiático esse fenômeno, como recentemente destacou Byung-Chul Han[15], as sociedades orientais não acanham-se frente o desdobramento de antropotécnicas de biopoder e necropolítica em nome de um futuro ideal que nunca chega. Aqui, a cidade assume o seu caráter mais perverso, pois deixa de comportar os aspectos vislumbrados da organicidade social e da fruição da civitas para converter-se em laboratório molar das tecnologias do corpo e da demografia. As tecnologias implantadas majoritariamente no ocidente pelas grandes corporações no gerenciamento da mão-de-obra, tomam na Ásia o aspecto de política pública universal.
A Europa sofre o risco de incorporar tais medidas em nome da "ordem social", como resposta ao medo. Assim, a praça pública tem como palavra do dia "proteção". O papel da filosofia neste mundo pós-COVID é o de ocupar a cidade como o seu espaço de re-produção social e intelectual, ousar e esclarecer os perigos latentes à demagogia tecno-utópica e territorializar-se nos espaços públicos. Ao filósofo, cabe atualmente o papel de servir de máscara ao vírus da higienizaçao total do espaço social e de barricada à reconfiguração das cidades como espaço ideal de realização dos projetos distópicos aqui especulados. E, como constantemente nos faz lembrar a professora Paula Cristina Pereira, não podemos correr o risco da filosofia ficar às portas das cidades[16]. Hoje, mais do que nunca, o espaço urbano é o tribunal da razão.
Referências
[1] Smith, N. K. (2011). Immanuel Kant's critique of pure reason. Read Books Ltd.
[2] Entendido por diminuir, reduzir, simplificar, tornar algo substancialmente menor e de caráter raso, dentro da lógica da alienação em Marx. Rompimento relacional.
[3] Em termos não-habermasianos, mas sim no sentido da co-escrita que derivo da filosofia de Vilém Flusser, mais sobre isto ao longo do ensaio.
[4] Krause, G. B. SCIENCE AS FICTION: Vilém Flusser’s Philosophy.
[5] “essa forma híbrida entre poesia e prosa, entre filosofia e jornalismo, entre aforismo e discurso, entre tratado acadêmico e vulgarização, entre crítica e criticado” (Flusser, 2007, 83) [6] Schwarz, R. (1978). O pai de família e outros estudos (Vol. 27, p.71). Rio de Janeiro: Paz e Terra.
[7] E aqui não deixo de pensar no que diz Josep Ramoneda: Once the community of origin between philosophy and city is established, what is it that presently — philosophy being the ontology of the present — makes the question "What is a city?" even more profound? Inhttps://www.publicspace.org/multimedia/-/post/a-philosophical-idea-of-the-city
[8] “O que vem aí, ninguém sabe. Adivinha-se, teme-se que seja devastador. Em número de mortes, em sofrimento, em destruição. Mas, como não temos uma ideia clara do que poderá ser uma tal catástrofe, a ignorância e a confusão amplificam o nosso medo. Será um desastre planetário e regional, colectivo e individual, já presente e ainda futuro, conhecido e familiar, mas sempre longínquo e estrangeiro, destinado aos outros, mas cada vez mais perto. Não é o simples medo da morte, é a angústia da morte absurda, imprevista, brutal e sem razão, violenta e injusta. Rebenta com o sentido e quebra o nexo do mundo.” José Gil, O Medo: https://n-1edicoes.org/001
[9] Buchanan, I. (2010). A dictionary of critical theory. OUP Oxford e Jameson, F. (1991). Postmodernism, or, the cultural logic of late capitalism. duke university Press.
[10] Mbembe, A. (2011). Sobre el gobierno privado indirecto. Achille Mbembe, Necropolítica, Madrid, Melusina, 77-120.
[11] Massive open on-line courses.
[12] https://www.weforum.org/agenda/2015/08/what-is-helicopter-money/
[13] https://blogs.princeton.edu/librarian/2010/11/the_crisis_in_the_humanities/ e Elster, J. (2011). Hard and soft obscurantism in the humanities and social sciences. Diogenes, 58(1-2), 159-170.
[14] i.e. Science, technology, engineering, and mathematics (ciências, tecnologia, engenharia e matemática).
[15] https://brasil.elpais.com/ideas/2020-03-22/o-coronavirus-de-hoje-e-o-mundo-de-amanha-segundo-o-filosofo-byung-chul-han.html
[16] Assunto rotineiramente tratado nos seminários da cadeira em Ética e Política II do Instituto de Filosofia da Universidade do Porto.