Queria ser eu o sábio. Sinto, porém, que me faltam a experiência de vida necessária e a sede de aventura. As ervas-de-passarinho talvez sejam parecidas com o conhecimento científico na forma em que se instalam e colonizam a vida “lá fora”, aquela externa às nossas mentes. No entanto, não podemos negar a resiliência e o sucesso evolutivo das mesmas. As Viscum album, como são conhecidas intimamente pelos cientistas, são um verdadeiro exemplo de resistência: habitam virtualmente os quatro cantos do globo e associam-se, semiparasitariamente, a absolutamente quase todinhas as categorias de árvores habitantes das grandes cidades.
Além de consideradas “parasitas terríveis”, as ervas-de-passarinho são fontes de importantes princípios ativos para o tratamento de diversas doenças que aflige os sistemas nervoso e cardíaco. A ciência, quando bem explorada, é ela também fonte de enorme sabedoria e, mais importante, meio de reprodução e continuidade da mesma vida que alimenta o espírito mágico nas suas múltiplas dimensões. Queria ser uma planta e sobreviver instintivamente em meio a cidade, aos homens e aos meus pares.
No entanto, não é exatamente sobre isso que fala a crónica “O nome”. Quando fala Amílcar Herrera do seu sonho, em que um dia qualquer acorda sem se lembrar do seu nome, está ele a falar da prisão que os outros, desde o nosso achamento da vida, colocam ao redor da nossa pessoa. Talvez, mesmo que não esqueçamos dos nossos nomes, ainda não sabemos bem ao certo quem somos. É esse o grande desafio em que me encontro agora. Sei das expectativas e das tentativas de cura que tantos terapeutas, religiosos, espiritualistas, familiares e familiares espiritualistas tentaram prescrever-me em busca da minha adequação a isto tudo. Não sei se concordo com Amílcar no que tange o nosso ser, dele habitar tão infame gaiola. Julgo que o meu ser está esfacelado nos veios abertos do campo semântico da palavra Rafael. Para cada mente, em cada coração daqueles que se importam comigo, há um Rafael em potência, um eu desconhecido de mim, um Rafael que poderia ser feliz, talvez.
O mundo não me parece mais fazer sentido, ainda que tenha sempre me sentido deprimido. Basicamente, tenho aquela depressão que parece com uma coceirinha: começa pequena, como um mero incomodo e como as miliárias no verão intenso, tomam todo o meu corpo. Quando me apercebo, já é tarde. Os europeus antigos a isso chamavam melancolia. A estranha parte nisto tudo é que acabei, sinto, por tornar-me como um estoico deprimido; nada mais pode-me atingir, nada mais me incomoda. Não pelo domínio magistral da vontade, mas pela derrota servil face os meus nervos.
Sinto-me triste, disso sei bem, porém, tal tristeza caminha lado-a-lado com o sentimento de que o desconsolo é o estado natural da matéria. O que faz com que conclua que sou, dentre tantos homens, normal. Acrescento que a vida é como um jogo de dados, cujos resultados surgem por inúmeras variáveis, mas que, ainda sim, não conseguem escapar do caráter imperativamente aleatório da nossa humanidade.
Por outro lado, os ricos e sortudos são os únicos capazes de acessar a completude. O nome, para eles, é plástico. Nomes-fantasia, nomes artísticos e “stage personas”. No meu lado, sou impedido de ser-aí [becoming, Dasein]. Eu nunca estarei-lá, jamais atualizarei o meu labor (no sentido latino da palavra que diferencia trabalho manual de trabalho intelectual). O meu corpo pode ser uma ferramenta, mas a minha mente foge do chamamento. O meu nome, a mim, não vale nada. A minha mão não reage aos comandos quando chamada.
Devo admitir, a vida mudou, tornou-se mais justa. Tenho comigo uma namorada, companheira mesmo, maravilhosa. Trabalhadora, esforçada e muito solidária. Livrei-me dos meus grilhões amorosos passados. No entanto, sinto que ainda sofro, como o escravo que se vê liberto e sem mestre, sem saber o que (conduzir) com as mãos e os pés livres — o pobre diabo que jamais aprendeu a caminhar. Como escravo sem rumo, acabou-me a simpatia pelos meus pares, pelos meus parentes e talvez jamais os tenha tido. Nem ao menos restou-me um pouco de apreço aos meus concidadãos. Sonho com o dia em que verterei ao solo úmido da floresta, ungido pela relva e agraciado pela força sagrada de uma erva-de-passarinho qualquer ou de um micélio; serei simplesmente consumido e evolar-me-ei por fim. Cessar de ser. Sem morte, sem dor, sem nascimento, sem memória, apenas o milagre do nada e a consagração da não existência.
É assim que me sinto. Para sobreviver, alimento-me da felicidade alheia. Seja da minha companheira, da minha irmã, dos meus cães. Falho em objetivos, pois objeto apenas não ser. Continuo o meu caminho, com vitaminas e pastilhas diariamente, ainda que reconheça a estranheza do meu encantamento pela diversidade inerente a toda a vida.
Observar o mundo morrer tem matado-me e não sei se serei forte o suficiente para (sobre)viver a(o) fim-dos-tempos, e hoje (ontem) tive a minha terapia. Termino a pensar o que poderei tirar disso tudo.
Será que tenho eu um conceito de Rafael? Haverá um conceito tal?
“Quando o meu nome é pronunciado, eu sou imediatamente informado do que fiz no passado. E, ao ser informado, sou também informado do meu ser e daquilo que se espera de mim no futuro. O nome, assim, obriga-me a ser de um jeito que se espera. O nome contém o programa do meu ser.”
Que sei eu do que serei se não sei o que sou? Já disse Pessoa. Tantos que pensam ser o mesmo, mas que coisa é essa que tantos pensam ser?