Por uma filosofia das catástrofes para remediar a ansiedade
Num tempo em que Gaia trespassa os limites percebidos como concretos da razão econômica, soma-se ao horizonte de dissolução ontológica e cataclísmica a guerra contra os conceitos.
O realismo capitalista irrompeu sobre as nossas cabeças, mãos e pulmões. Num tempo em que Gaia trespassa os limites percebidos como concretos da razão econômica, soma-se ao horizonte da dissolução ontológica e cataclísmica a guerra contra os conceitos promovida pelo doutrinamento pós-moderno.
[Desolation.] Thomas Cole, The Course of Empire series (1833-1836).
A crise do Covid-19 colocou o mundo em um sobressalto raramente observado e reconfigurou as sociabilidades, requalificou verdades e alterou radicalmente a temporalidade do sistema econômico global. Uma das ansiedades mais angustiantes dentre as várias que assombram os Sapiens, o sentimento de urgência atrelado à imagem recorrente nos meios de comunicação e académicos da catástrofe iminente é sem dúvida nenhuma o maior combustível do par niilismo-cinismo que nos acompanha. No campo universitário e de militância política, como recentemente apontou o filósofo esloveno Slavoj Žižek, a esquerda atêm-se com fervor à ideia da catástrofe — seja ela política, econômica ou ambiental — como abertura do horizonte de possibilidades do agir revolucionário. Na mesma fala, proferida como aula magna em Birkbeck (Universidade de Londres) Žižek criticou os que, como Bruno Latour (Face à Gaia, 2016) e Isabelle Stengers (No Tempo das Catástrofes, 2015), valem-se do conceito de Antropoceno, isto é, da interferência da humanidade no sistema ecológico global como força geofísica de transformação da história geológica e ambiental do planeta.
O vírus despertado em Wuhan, na China, é um ensaio sobre esse céu cada vez mais próximo das nossas cabeças. As alterações climáticas são um problema gravíssimo, assim como a agenda privatizadora dos serviços públicos essenciais, o que coloca em risco a capacidade de resposta dos governos em tempos de crise como o de agora. Desde Espanha até os Estados Unidos, é possível escutar os clamores por uma nova política econômica de cunho keynesiano — uma clara tentativa de reincorporar o Welfare State nos debates da praça pública já que, ao que tudo indica, o sistema financeiro global também está de quarentena. Pensar o Antropoceno, o desemprego endêmico, a imigração e tantos outros problemas inadiáveis é se deixar levar pela ansiedade da urgência. Tal pressão emocional e cognitiva que nos circunda, ao contrário do que imaginam os profetas do apocalipse de plantão, afectam os símios sapientes não à mobilização visando à ação transformadora, mas sim de duas uma: ou os levam à apatia alimentada pela alienação no entretenimento digital ou ao pânico paralisante.
O jogo da desconstrução infinitesimal dos conceitos, da fluidez identitária e do relativismo cultural retornante acabam amplificando o ruído contraproducente no debate público, mas também levam à perversa prática de jogar os indivíduos em labirintos intelectuais que os impossibilitam o acesso à ferramentas de esclarecimento, capazes, por sua vez, de reduzir ansiedades e reativar a capacidade de agir. Thomas Cole, célebre pintor estadunidense do século XIX, havia alertado os seus contemporâneos sobre os riscos de se deixarem inebriar pela construção do Império em América do Norte. A sua série The Course of Empire conta com cinco painéis (ou estágios civilizacionais) que narram, em tom de premeditação, a ascensão e queda de todos os impérios terrenos. Em ordem são: the arcadian (a sociedade agrária camponesa em harmonia ao natural), the consummation (a violência estatal em busca da estabilidade, ou com pax romana), destruction (o rompimento revolucionário dos súditos) e desolation (a destruição física das sociedades e o processo de reconquista do espaço pela natureza). Das sociedades pastoris à desolação dos sobreviventes da dissolução imperial, Cole aponta-nos os aspectos emocionais e traumáticos dos grandes frenesis coletivos dos homens. Assim, deve ser também a filosofia da catástrofe, emotiva como também objetiva, tal como os quadros compositores da série. O objetivo de tal prática deve ser, acima de tudo, terapêutico e comunicativo como a arte. Para combater uma ansiedade existencial de ordem ontológica, é preciso compreender a ascensão da narrativa cataclísmica no pensamento atual. Afinal, de nada nos servirá o medo e o conhecimento dos problemas que nos afetam sem que o ruído de fundo seja desligado e possamos escutar as nossas próprias vozes interiores. Talvez seja esse o aspecto positivo por detrás do inimigo invisível que nos ataca, pois, com as ruas vazias e os motores do capitalismo desligados seremos capazes de reconhecer que existe de fato uma possibilidade não-infernal de existir-no-mundo.
Já sinto o ar mais puro entrando pela minha janela...